Teto de gastos evidenciou as preferências dos representantes do povo

Emendas tornaram-se impositivas, cresceram e avançaram sobre outras despesas

O resultado do tortuoso caminho para a aprovação do Orçamento de 2021 é conhecido: acotovelaram-se bilhões em emendas parlamentares em detrimento das urgências da população pelos efeitos do recrudescimento da pandemia sobre a saúde e a renda. Houve muito ruído sobre o que ficou de fora, como o Censo, e com o que foi preservado, como as emendas parlamentares.

A necessidade de acomodar sob o mesmo teto a expansão do Bolsa Família e a “surpresa” dos precatórios sem enfrentar o “caráter geológico” do Orçamento, isso é, sem rever prioridades pretéritas, sua eficácia e pertinência, renova o debate da priorização das emendas sobre outras despesas também em 2022.

O fato concreto é que as emendas são instrumentos comuns, legais e legítimos nas democracias de representação proporcional e há evidências, inclusive para o Brasil, de que esse é um dispositivo importante para que parlamentares recompensem seus eleitores e consolidem poder localmente. O porquê, portanto, das sucessivas tentativas de avanço do Legislativo sobre o Orçamento nas últimas décadas parece claro.

Como bem documentam Paulo Hartung, Marcos Mendes e Fabio Giambiagi em artigo na revista Conjuntura Econômica deste mês, a cristalização desse movimento a partir de 2015 e a elevação dos montantes designados para esse fim coincidem com a fraqueza do Executivo e a recusa dos governos Dilma e Bolsonaro em partilhar o poder de maneira legítima na construção de uma maioria estável no Congresso.

O Congresso provou do poder e gostou! Algumas emendas tornaram-se impositivas (o que não seria um problema em si, não fosse a rigidez orçamentária), cresceram em volume e avançaram sobre outras despesas. Renasceram as emendas de relator e morreu boa parte da transparência…

Dessas questões, duas, interligadas, merecem atenção: as emendas de relator, que concentram metade do bolo sob o desígnio de um pequeno grupo político, sem nenhuma justificativa razoável, e a diluição dos mecanismos de transparência, que permitem saber quem indicou o que, o quanto, para quê.

O teto de gastos foi fundamental para dar transparência ao debate sobre o crescimento e a alocação dos gastos públicos. A expectativa era que tornasse inevitável a escolha das “grandes prioridades”. A (triste) realidade é que, dada nossa recusa em fazer/rever escolhas, tornou mais visível o ranqueamento das preferências dos representantes do povo. Às vezes, as piores mentiras são as que contamos para nós mesmos…

Lamento profundamente a perda do grande homem público brasileiro João Sayad. Minha solidariedade à família.

 

Antônio Delfim Netto: Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”