Do valor que se tem

Naquele tempo em que eu construí a nossa casa, forrava o chão com as flores que você plantara no meu jardim. Era tanta pétala colorida que o chão parecia um tapete, desde a entradinha da varanda até o fundo, já chegando ao pomar. Eu pulava da cama antes do primeiro raio de sol, para forrar a mesa com aquela toalha de renda. O cheiro do café tomava conta e eu cortando os pães e o queijo derretendo para nos servir. Admirava suas mãos delicadas, seu sorriso por trás da fumaça saindo da caneca. Prestava atenção na sua reação para saber se estava bom para o seu paladar. Nossas fotos na parede mostrando cada passo, cada dia que eu pude de mim ser mais e do meu melhor te lambuzar os beiços com o sabor que eu guardei os anos todos para te dar.

Sabe aquela sensação de paraíso? Era isso que eu sentia cada vez que você me dizia ser tanta sorte sua, que eu me pensava rei. Mas quem reinava mesmo era você! Absoluta diante dos meus olhos. Cada desejo, uma ordem que eu atendia com receio que um dia eu demorasse e você tivesse dúvida do quanto era única. Passava meses plantando frutas, para colhê-las bem fresquinhas. Era fartura de sabores. Cada semente eu sei continha, um pedaço dessa coisa toda minha, de imaginar que esse valor que eu tinha, era um presente para você.

Vez em quando te via de longe e corria te receber na porta com aquele abraço demorado de quem morreu de saudade. Lembra nas noites frias, te aquecia apertadinho, prestando atenção para ver se não descobria as pontas dos pés.  Cortava lenha trazendo para dentro a certeza de que a lareira nos ofereceria as chamas certas para estralar queimando em brasa a nossa alma, aquecendo nosso corpo, nossa vida simplizinha que eu projetei naquele pedaço de chão.

Quando da janela eu via o vento sacudir as árvores, nem dava tempo das primeiras gotas chegarem, já fechava as janelas, puxando as cortinas estampadas dos motivos singelos que você gostava. Mas um dia eu distraído, tropecei passando um vão. Tentei salvar, mas veio ao chão, aquele vaso redondinho que você guardava junto aos potes. Era tanto pedaço que nem a melhor cola não juntava. Achei que tinha outros, que eu trazia para o lugar, mas você não perdoou. Silêncio… não me respondia. Implorei desculpa e expliquei. Era tropeço! De vez em quando eu caio. Eu juro, era coisa rara. Não adiantou. Fiquei falando em meio às lágrimas. Era tarde: Você não sabe que não pode, distraído? Disse tão fácil que me perdi. Por trás da porta passei um bilhete, não foge daqui, não se vá. Fica comigo e veja que aprendi.

Mas se de novo eu esbarrar, não me odeie assim. Olha nos meus olhos que talvez eu só precise de um pouco de atenção. Querer ser eu esse menino e caminhar descalço e sem relógio. Ralar a ponta do dedão na saliência da guia. Pular o muro, buscar a bola e receber um elogio. Esquenta não. É nada isso. Eu estou aqui. Se cobre.  E aí, quem sabe assim eu cure de vez esse meu medo de perder, sabe lá o quê, já que tudo que é meu é meu e se essa tristeza chegar numa madrugada dessas, eu já tenha entendido tudo e seja finalmente o dono dela.