De quando fiquei sem palavras

Há não tanto tempo peguei-me numa situação um tanto quanto embaraçosa e que julguei merecedora destas linhas. Sabe como é, com a rotina é comum que tudo pareça normal e que os fatos do cotidiano quase sempre perpassem desapercebidos as nossas retinas cansadas da mesmice de um incondicional vai e vem quase sem sentido e que dificilmente nos permite ser personagens de algo que realmente importe.

Primeiro veio à notícia: o inevitável choque de saber que alguém de repente, já não mais está. Aquela coisa difícil de num piscar de olhos ser obrigado a usar os verbos no pretérito perfeito do indicativo: “Foi tão boa pessoa”, “Passou desta para uma melhor”, “Finalmente descansou”. Bom, nessa hora não há como não fazer um monte de reflexões e de lembrar uma vez mais a pequenez dos seres e a imensidão do egoísmo desenfreado.

Velório às vezes é cômico. Têm artistas de todos os tipos. Como aqueles que te conhecem desde pequeno e que te pegaram no colo, mas que você, ainda que se esforce muito, no máximo consegue relacionar a pessoa a um nome que não escuta há pelo menos uma porção de anos. Há também aquelas pessoas que você até se esqueceu de que são da sua família e aqueles em quem você pára para pensar e percebe que para eles, a sua existência jamais passou despercebida, ainda que a possibilidade da sua presença tenha sido remota durante todo esse tempo. Existem aqueles que a gente se esquece até de que existiam. Fora o povo que vai para “matar gente” e atualizar mortes que as pessoas não contabilizaram por não receberem a noticia, mas que evidenciam a percepção de que o tempo passa e passa rápido.

Fico tonto de tanto focar calado o movimento das mãos nem sempre condolentes, que de leve acariciam as costas, num movimento tristemente sutil. Observo as cores frias e distintas que se encontram para formar o ambiente mórbido de quem veio buscar consolo, de quem veio se despedir ou simplesmente de quem veio saber quem morreu. Quase todo mundo tem um bom motivo para ir embora, para dar só uma passadinha, porque no outro dia tem que trabalhar, porque deixou as crianças sozinhas em casa ou por tantos outros compromissos inadiáveis do impiedoso mundo que não pára.                    Voltando às impressões, não posso deixar de comentar que há sempre uma boa alma que se dispõe a passar o café para que a outra não durma e não perca o ânimo de cumprir sua missão de não deixar o assunto acabar. Café de velório parece até mais doce, mas do chá eu não posso falar, porque nunca tomo.

Quando chegou o momento da oração, fiquei contente, pois com certeza, é a maneira mais sincera de dizer silenciosamente o que deseja ouvir aquele que se foi e também os que ficaram.  É um momento que alguns esperam. Outros discretamente fogem e que alguns poucos simplesmente ignoram. Tem gente que esquece que sua hora também vai chegar e que não tem hora marcada para isso, mas preferem se omitir, ao fazer valer o milagre da sua presença, talvez por acharem que amanhã ainda dá tempo.

Fiz o possível para concentrar-me em cada palavra e homenagear com meu olhar alguém especial de verdade e que carregava em seu semblante o reflexo de momentos que se sucederam no meu pensamento, como filme da “sessão da tarde” que nos lembra de tanta coisa e questionar até que ponto é possível crer que ainda haverá muita coisa. É incrível como vidas interrompidas deixam nuas nossas convicções e autossuficiências.

Pouco antes do final, de súbito percebi que era hora de sair de cena e que já havia cumprido de maneira eficaz meu papel. Mas para isso precisava me aproximar rapidamente da urna e tocar o defunto, antes que todos o fizessem e retardassem o meu retorno para casa, já que dentro de alguns segundos eu seria mais um tentando me aproximar, buscando as brechas. Dentro de mim, já havia o temor de imaginar a melancólica cena de esperar pacientemente o ato de chorar e sair, chorar e sair… que duraria o suficiente para me deixar impaciente e preocupado, porque dependia de carona.

Preparei-me como quem calcula um ataque. Nada poderia dar errado. Acabaria a oração, eu daria três passos, diria adeus e sairia satisfeito. No entanto, momentos antes me lembrei de que não estava sozinho e que meu ato precisaria ser compartilhado naquele momento; até porque de nada adiantaria eu sair rapidamente, sem que ela também o fizesse. Estando separados apenas por alguns metros, imaginei ser fácil fazer-lhe um simples gesto, que faria com que percebendo a mensagem, se aproximasse juntando-se a mim naquele gesto rápido, mas intensamente significativo.

Chegou a hora! Foram segundos que pareciam eternidade. No momento em que ecoava o “Amém”, eu olhei para trás, estiquei o braço e a palma da minha mão apontava para a necessidade do encontro com as mãos dela. Juntas as mãos poderíamos finalmente consumar o meu desejo.

As mãos se tocaram, mas estranhamente os dedos não buscaram se entrelaçar aos meus e a pele era áspera e fria e… Meu Deus! Quem é esse cara? Antes que eu pudesse reagir de alguma forma, constatei perplexo que todos davam as mãos e que em poucos minutos já havia outras mãos. E as mãos nas mãos formaram uma espécie de numerosa corrente que circundou a urna com o corpo em meio à sala repleta. Passei a ouvir um silêncio ensurdecedor e em seguida percebi os olhares. Esperavam que eu dissesse algo, pois julgaram premeditada minha ação de unir a todos para que proferisse as palavras certas no momento certo. Mas eu estava no lugar errado.

Gargalhava por dentro ao mesmo tempo em que enraivecido com a pessoa que não percebeu que a minha mão aberta não era para ele, procurava entender o porquê de tudo aquilo e se realmente de alguma forma eu não estava sendo cobrado justamente, ou até castigado por tanta pressa. Não consegui sequer olhar em alguma direção. Apenas esperei como todos, que alguém, contemplando aquela cena pudesse fazer o que precisava ser feito. Uma frase, uma oração, mas… outra? Finalmente: santas cordas vocais vibraram e fizeram propagar por benditas ondas sonoras agradáveis sons que ecoaram como canções vindas de uma jovem que se encontrava ao meu lado esquerdo. Ela falou rápido, bonito, necessário e eu… continuo sem palavras.

 

Luís Alberto de Moraes tem formação em Letras, leciona há quase vinte anos e prepara o lançamento de um livro de crônicas e poemas. @luis.alb