A imagem de corpos de crianças e adultos, expondo os terríveis efeitos da desnutrição, tem sido frequente em anúncios de organizações que acolhem doações para as populações famintas da África. Nos últimos dias, o flagrante estampa a devastação na comunidade dos povos Yanomami, que vivem entre os Estados do Amazonas e de Roraima, onde a crise sanitária já resultou na morte de cerca de 570 meninos e meninas.
Estaria ocorrendo um genocídio? Pinço conceitos: genocídio é um termo criado pelo advogado polonês Raphael Lemkin, em 1944, e corroborado, em 1948, pela Organização das Nações Unidas, para designar “atos cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. O termo foi usado pelo Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, em 1945, para julgar os crimes nazistas na II Guerra Mundial contra o povo judeu.
Este analista direciona a questão ao foro de debates, mas não pode deixar de apontar, entre os atos praticados no extermínio dos yanomamis, uma das hipóteses levantadas para ancorar o conceito de genocídio: “a imposição de condições de vida que possam causar a destruição física e mental de um povo ou que impeçam a reprodução física de membros do grupo”, conforme prescreve a Corte Penal Internacional de Haia (Países Baixos) para definir crimes contra a humanidade.
Que os leitores tirem suas conclusões.
O que chama a atenção nos relatos sobre a destruição dos yanomami é o descaso dos governos. Ao longo de três campanhas eleitorais, coordenando a área do marketing em Roraima, tive oportunidade de presenciar em Boa Vista, a capital, cenas pungentes sobre a vida dessa comunidade. Vi crianças e adultos deitados em redes, padecendo suas agruras dentro de barracas improvisadas, tomando medicamentos e tentando se alimentar. Algo improvisado e recorrente nos anos 90. Nada de projetos estruturantes, nada de programas consistentes. Um cordão de indígenas nos corredores da morte.
O que tem faltado aos governantes para serem tão insensíveis, desleixados, bárbaros no trato dos povos originários? O que os torna tão alheios às condições de vida dos povos indígenas? A ausência de valores humanos? Confúcio, o maior sábio chinês, ensinava:
– a humanidade é mais essencial para o povo do que água e fogo. Vi homens perderem sua vida por se entregarem à água ou ao fogo; nunca vi alguém perder a vida por se entregar à humanidade.
Dizia mais: “um governo é bom quando faz felizes os que sob ele vivem e atrai os que vivem longe…. um bom governo se baseia na preocupação do bem-estar, na felicidade dos indivíduos, no bom exemplo do uso do poder e na confiança na bondade humana.
Que pessoas felizes fruem as bondades dos governos e que alas distantes são atraídas para seu abrigo? Que confiança na bondade humana(?) eles exibem?
Sem querer exagerar na corrente pecaminosa que jogaria governantes e representantes nas profundidades do inferno, suas identidades parecem forjadas com o aço da frieza. Têm olhos que não enxergam, ouvidos que não ouvem, bocas que repetem promessas mirabolantes.
Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, palestras que pronunciaria durante o ano letivo de 1985-86, na Universidade de Harvard, se a morte súbita não interrompesse sua obra, Ítalo Calvino, o grande escritor italiano nascido em Cuba, tratou de objetos literários que gostaria que a humanidade preservasse na nova era. Apesar de o foco centrar-se nos valores literários, não há como deixar de projetar seu ideário no campo da vida social e política.
O Brasil que ressurge da eleição de outubro de 2022 espera por exatidão, esse valor tão massacrado nesses tempos de fake-news. Urge banir do dicionário mentiras e falsas versões, perfis inescrupulosos. É asneira alguém querer aparecer como Salvador da Pátria.
Tenho recorrido a outro italiano, o filósofo Norberto Bobbio, que ensina como aplainar o terreno de governantes que pretendem ser protagonistas da história. Pinço sua observação para o poder oculto, que esconde maquinações diabólicas. As malhas do poder invisível carecem ser escancaradas. Daí a necessidade de darmos força à visibilidade. O País não aceita viver sob dois Estados, o visível e o invisível, este operado por estruturas corrompidas, gabinetes secretos, cartões corporativos.
Já Calvino discorre sobre o valor da multiplicidade dos sujeitos. Puxo o valor literário para a governança e aduzo: chegou a hora de multiplicarmos as vozes, os olhares e as ações sobre nossa realidade. A pluralidade étnica, social, econômica e cultural do País constitui referência para o planejamento e administração de políticas públicas. Essa visão múltipla recomenda a mobilização de todas as classes e categorias profissionais, atribuindo-se a cada uma deveres e direitos.
Por último, a necessidade de se agregar consistência aos conteúdos, programas e propostas, o que requer seriedade, densidade, peso. O contraponto é a improvisação, a irresponsabilidade, a tibieza. E que as ações passem a ser realizadas de imediato, sem a lengalenga dos velhos tempos, a cantilena de “construir a Pátria dos nossos filhos e dos nossos netos”. O futuro chegou.
Democraticídio
Tomo a liberdade de pinçar o termo que titula este artigo, cujo autor é Carlos Ayres Brito, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, poeta, um sergipano que constrói catedrais de linguagem com a constante busca de analogias para facilitar a compreensão do juridiquês.
Em entrevista ao jornal O Globo, o simpático jurista fala de maneira clara sobre as ameaças que pairam sobre nossa democracia. Há um contexto que junta financiadores de atos ilícitos, propagadores do caos, aventureiros oportunistas, inocentes úteis, enfim, massa de manobra usada para destroçar a vida democrática.
A democracia vive momentos desestabilizadores em todos os quadrantes do planeta. A democracia, mesmo considerada o melhor sistema para orientar os governos e contemplar as demandas da sociedade, conforme dizia Churchill, é, hoje, alvo de bombardeio por parte dos exércitos manobrados e manipulados por bandos que desejam implantar em seu lugar o mando e um mundo ditatorial.
A democracia tem permitido, inclusive, que se lute contra ela.
Sabemos que suas promessas ainda não são uma realidade. Bobbio lembrava as promessas não cumpridas da democracia: a força das oligarquias, a falta de clareza dos governos, a falta de acesso à justiça, a educação para a cidadania, meta distante de ser realizada, o poder invisível.
Debaixo dessa teia, governantes apelam para o populismo, modo cabreiro para driblar as demandas das massas e anunciar para elas a chegada ao paraíso, por eles traduzida como dinheiro no bolso, alimento barato, saúde para os desvalidos, transporte barato, educação de alto nível, segurança na porta de cada um. Muita mistificação, engodo. As massas, engabeladas, acreditam.
Ortega y Gasset já alertava nos anos iniciantes do século XX, colocando o aviso na boca bigoduda de Nietsche, que fazia temporada de tratamento nos penhascos de Engadine, nos alpes suíços: “vejo se avolumar a onda de niilismo”. De lá para cá, a ignorância continuou a impregnar parcelas do planeta, a fazer crescer a quantidade de gentes desorientadas, a dar oportunidade a oportunistas, aventureiros, a massas que clamam por signos de orientação, a alas desejosas de melhorar suas vidas. Tal meta originou a criação de ovelhas conformadas com o pasto. Sem alma cívica. Sem vontade de caminhar na rota civilizatória. Basta que consigam se alimentar.
Lembro, a propósito, que os indivíduos agem de acordo com seus instintos. O primeiro é o da sobrevivência, que Sergei Tchakhotine, o cientista social russo, designa como o “impulso combativo”. Para sobreviver, a pessoa adentra a arena de lutas, até para morrer. O segundo instinto é o nutritivo, que condiciona as gentes a lutar pelo seu estômago, o que as fazem aprovar governos que atendam às demandas alimentares. O terceiro impulso é o paternal, que joga os seres na teia dos valores humanistas, o amor, a solidariedade, a amizade, o companheirismo. E, por último, o instinto sexual, ligado à reprodução da espécie, e que patrocina todos os conflitos e as lutas na área dos gêneros.
Vamos acompanhar esses vetores e sua influência na dinâmica civilizatória do país. Como esses elementos influirão na política e, mais que isso, nas ações e vontade da comunidade nacional?
Os atos recentes de vandalismo, que destruíram espaços e feriram obras de nossa cultura, são provas incontestes de que a barbárie ainda é um traço de nossa índole.
Constatar que cerca de 50% são mais intolerantes hoje que no passado tem um alto significado. Pesquisa recente mostra que ainda somos um povo bárbaro.
E que pode cometer um “democraticídio”. A morte suicida de nossa democracia pode acontecer?
Inacreditável a hipótese. Rezemos para o “Deus brasileiro”. Ajude-nos, amigo Francisco, nosso vizinho argentino, hoje sentado no trono de São Pedro.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twiter@gaudtorquato