Antidemocrático, processo orçamentário concentra poder nas mãos de poucos
A elevação no volume de emendas parlamentares, com certa priorização sobre as demais despesas, tem sido alvo dos debates orçamentários recentes. Sob a justificativa da necessária expansão assistencial aos mais pobres, o contorno ao teto de gastos sem o devido enfrentamento do “caráter geológico” do Orçamento (sem rever prioridades pretéritas e sua eficácia), e na presença de quase R$ 40 bilhões em emendas, causa espécie.
É preciso chamar a atenção para o fato de que há “emendas” e “emendas”. Emendas parlamentares são instrumentos comuns, legais e legítimos nas democracias de representação proporcional. E há evidências, inclusive para o Brasil, de que este é um dispositivo importante para que parlamentares recompensem seus eleitores e consolidem poder localmente. Não há nenhum argumento ou princípio lógico para dizer que os recursos distribuídos ao poder local através desta ferramenta não atendam, a priori, a necessidades legítimas da população.
Com a recusa do Executivo em partilhar o poder de maneira legítima para construir uma maioria estável no Congresso, o Legislativo foi atrás de instrumentos alternativos. Algumas emendas tornaram-se impositivas, outras cresceram em volume, perderam transparência e avançaram sobre as demais despesas.
O governo Bolsonaro, fruto da narrativa do “toma lá, dá cá”, da difundida percepção de que toda coalizão política é necessariamente corrupta, fez renascer as emendas de relator na tentativa de formar base de sustentação sem abrir mão de cargos-chaves de maior visibilidade para a população.
Por não serem impositivas, elas dão maior grau de liberdade para que o governo possa “manobrar” os votos em projetos votos de seu interesse (na suposição heroica de que eles existam). Concentram mais da metade do total das emendas, quase R$ 20 bi, aos desígnios de um pequeno grupo político, sem justificativa razoável, e com a diluição dos mecanismos de transparência que permitem saber quem indicou o que, o quanto e para quê. Um modo relativamente caro e pouco eficaz de o Executivo fazer política…
É claro que a recusa reiterada a rever escolhas, o que faz com que um programa estruturado de transferência de renda não consiga “roubar” recursos pulverizados como os embutidos nas emendas parlamentares, reforça o esmorecimento com a política ao evidenciar o (triste) ranqueamento das preferências dos representantes do povo. A questão central, no entanto, segue sendo a disfuncionalidade do processo orçamentário, sua intencional perda de transparência e sua antidemocrática concentração de poder nas mãos de poucos.
O resto é consequência.
Antônio Delfim Netto: Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”