Certa feita, em seu segundo mandato, Luiz Inácio fez intenso apelo a seus ministros por mais ação e menos discurso, mais integração e menos divergência, mais criatividade e menos queixa de falta de verba. Batia de frente no modelo de gestão capenga que domina a administração pública federal e que ele próprio ajuda a entortar com a ampliação exagerada de ministérios e secretarias especiais, beirando os 40.
Pois bem, há dias, em suas falas presidenciais de terceiro mandato, fez nova incursão, cobrando dos ministros mais resultados e lembrando que dinheiro tem e basta olhar para o orçamento de cada Pasta. Ação, ação, ação, cobrou o presidente.
E por que tal cobrança? Resposta: por causa do desequilíbrio entre a hiperatividade decisória e a eficiência de operação da burocracia governamental. Uma ordem do presidente acaba esbarrando nos chamados canais burocráticos. Atrasos no cumprimento de decisões, pouca motivação e disposição de burocratas, falta de sinergia, confusão de competências e ausência de controles convergem para estabelecer as bases do império do desperdício e da irresponsabilidade, cujas consequências entram pelo ralo do risco-Brasil.
A reforma na administração é mais uma lição de casa a ser feita. Se a máquina fosse mais lubrificada, mais ágil e menos desequilibrada, o Governo aumentaria sua credibilidade junto à sociedade, garantindo um impacto que reformas, como as da previdência e tributária, só alcançarão no longo prazo.
A crise de governabilidade, tão proclamada quando dela se faz uso para justificar a necessidade de se promover o ajuste fiscal/tributário, tem um forte componente na esfera da execução das políticas públicas, na incapacidade de fazer valer as leis e no descumprimento das decisões mais altas. A herança patrimonialista do Estado brasileiro e o sentido cartorial que ainda inspira padrões burocráticos encontram eco na alma de tecnocratas, uma casta recheada de representantes que confundem espaços públicos com territórios privados.
Para agravar a situação, ainda há de se conviver com a praga do loteamento de cargos entre políticos, principalmente as caravanas do Centrão. Há mais de 20 mil cargos na administração federal, o que mostra a extensão das “capitanias hereditárias”, que teimam em fixar sua permanência no território. Sob esse quadro desalentador, torna-se impossível estabelecer controles adequados para fiscalizar a aplicação de recursos e menos ainda garantir a continuidade de programas administrativos de gestões anteriores, considerados exemplares. Ao custo-Brasil, soma-se o preço da descontinuidade administrativa.
Somam-se ainda os custos do desperdício, das viagens, do tráfico de influência, da improbidade administrativa, do tamanho da burocracia governamental. Convivemos com uma gigantesca máquina, de cabeça agigantada e corpo debilitado, um arremedo de Proteu, o deus marinho, que tinha forma extravagante. Por que 39 ministérios, quando se sabe que a governança seria bem administrada com não mais que 20?
Com esse perfil disforme, cresce o descompasso entre o peso da cabeça governamental e os outros volumes, situação que gera problemas de ajustamento, até em reuniões ministeriais regadas a bocejos. O modelo de gestão está inadequado nessa quadra que recomenda racionalização, enxugamento, síntese e convergência.
Nas organizações privadas, identifica-se nas chefias intermediárias a retenção de informação, fato que deixa os quadros executivos, ao final da linha, desprovidos da base de conhecimento necessária para executar as tarefas. E isso ocorre porque determinados chefes, com receio de perder poder, não passam informações aos subordinados. No caso do Governo, o fenômeno abriga interesses de burocratas em segurar a peteca, influência do compadrio político, vícios e mazelas da cultura da administração pública e sentimento de posse do espaço público pelos “donos dos pedaços”.
Tempestividade e agilidade são conceitos inexistentes no vocabulário dos burocratas. Integração de setores e programas é algo que não combina com quem disputa poder. A burocracia não percebe que o corpo social continua desnudo. O próprio presidente deve achar que a administração se parece com uma bicicleta que não sai do lugar.
A sociedade aceita que os governos tenham um tempinho para lubrificar a máquina. Mas começa a duvidar quando as peças continuam enferrujadas. Lula ganhou seu terceiro mandato sob a esperança de mudar o que está atravancado, de fazer o melhor governo de toda a história, enfim, de levar o pão para a mesa dos famintos e despossuídos. Vai cumprir a promessa?
Os tortos caminhos
A esquerda e a direita estão entortadas. Pelo conceito que expressam, a esquerda representaria a defesa de visões progressistas, uma defesa intransigente de proteção à coletividade, significando a proteção dos direitos individuais, o alimento, a casa, a livre expressão. Sob esse ideário, o Estado assume a posição de Protetor do Cidadão. Já a direita defende princípios assemelhados, com ênfase aos direitos individuais e às políticas conservadoras, que elegem a família e as tradições como seu motor de propulsão.
Pois bem, os trajetos das duas configurações do arco ideológico estão tortos. A direita se bifurca numa encruzilhada que abre veredas, não se podendo saber para onde seus transeuntes andarão, se na curva mais extrema ou na estrada mais central. A esquerda, da mesma forma, se reparte em duas curvas, uma sinalizando o caminho da extremidade, outra aconselhando a trajetória mais central, o que coincide com a mesma bússola da direita. Ambas apontam para uma vereda central. A barafunda se estabelece.
esquerda e a direita estão entortadas. Pelo conceito que expressam, a esquerda representaria a defesa de visões progressistas, uma defesa intransigente de proteção à coletividade, significando a proteção dos direitos individuais, o alimento, a casa, a livre expressão. Sob esse ideário, o Estado assume a posição de Protetor do Cidadão. Já a direita defende princípios assemelhados, com ênfase aos direitos individuais e às políticas conservadoras, que elegem a família e as tradições como seu motor de propulsão.
Pois bem, os trajetos das duas configurações do arco ideológico estão tortos. A direita se bifurca numa encruzilhada que abre veredas, não se podendo saber para onde seus transeuntes andarão, se na curva mais extrema ou na estrada mais central. A esquerda, da mesma forma, se reparte em duas curvas, uma sinalizando o caminho da extremidade, outra aconselhando a trajetória mais central, o que coincide com a mesma bússola da direita. Ambas apontam para uma vereda central. A barafunda se estabelece.
Vamos aos fatos. Hoje, a direita se divide entre a ala do militar, capitão aposentado, Jair Bolsonaro. Que pretende, e prega, querer levar seu povo à terra prometida. O Moisés brasileiro conseguirá abrir e fechar o mar para inundar o exército de Faraó, e, assim o fazendo, implantar seu império?
O fato é que até a chegada de Jair ao Palácio do Planalto, o país tinha uma direita envergonhada. Que não assumia abertamente a defesa de ideias ortodoxas na área de costumes. Ser de direita era entendido com uma pessoa retrógada, defensora da supressão de direitos, um soldado civil da ditadura de 1964. Poucos, muito poucos, assumiam essa cara.
Já ser de esquerda significaria simpatizar com o comunismo, ou pelo menos, com uma posição mais amena, o socialismo de fundo democrata, encarnado na social-democracia. Mesmo assim, os sociais-democratas sofriam por carregarem a pecha de simpatizantes disfarçados do comunismo.
Pulemos no tempo. Cheguemos ao assento do Jair na cadeira principal do Planalto. A direita tira a carapuça, enxuga o rosto, e mostra-se de cara inteira e lavada ao país. A banda direitista se mobiliza e percorre a via até as eleições municipais. A esquerda toma um tranco. Aparecem outros coadjuvantes, ou melhor, pastores do rebanho direitista. Com uma tuba de ressonância capaz de sufocar a sinfonia bolsonarista, a do Jair. Um tal de Marçal entorta o caldo e faz a performance mais estrambótica no palco da direita. Que se bifurca, conforme os termos do início desta análise.
Já a esquerda tropeça na larga avenida onde caminhava. O andarilho principal, do PT, volta ao Palácio do Planalto, enxotando o capitão Jair, mesmo ganhando o assento presidencial por pequena margem. Também, pudera. O capitão foi um desastre na administração da pandemia que se alastrou no país durante seu reinado.
Uma ala da esquerda se posta na linha de frente do seu comandante, Luiz Inácio, defendo suas ações, mesmo aquelas que não condizem com o ideário do Partido, concebido, em sua origem, por sindicatos do ABC paulista e empurrão da igreja católica, lá pelos idos dos anos 80. Outra banda faz cara feia ao pragmatismo do senhor da guerra e da paz, o mesmo Luiz, que colocou o chamativo sobrenome Lula, em seu proclamado nome. Pragmatismo que se mostra no pacto com partidos do centro e da direita, alguns abrigados na sombra de um tal Centrão, ao qual o mandatário-mor do país entrega pacotes de benesses no balcão de recompensas.
A ala mais à esquerda do velho PT encurva sob a ventania assoprada pela banda mais central, e, assim, com a lombar dolorida, caminha, caminha, de forma trôpega, desviada de seu destino, afastada de seu sonho socializante. As curvas no caminho desvendam a índole de um país que sinaliza sua contrariedade em caminhar na faixa mais à esquerda do arco ideológico.
E o racha à direita exibe a inevitável condição de um país que tem espaços livres a serem ocupados por líderes autênticos e de imagem ilibada. Quem? Quem? Quem? Bolsonaro? Esse foi um tosco participante da bancada do baixo clero, na Câmara Federal, onde aparecia como feroz defensor dos pesados anos de chumbo. Sua imagem não é tão respeitada e ainda expressa a cor dos traumas e dor dos tempos mais recentes de sofrimento. Quem mais? Pablo Marçal? Ora, este não passa de um palhaço à procura de um circo. Quem mais? Ronaldo Caiado, Romeu Zema, Tarcísio de Freitas? São andarilhos da direita muito iniciantes, sem o traquejo da fama, e de pouca visibilidade na paisagem.
Como se observa, os dois caminhos nas pontas do arco ideológico estão encurvados, tortos, afastados de seu prumo.
Procura-se um andarilho capaz de mostrar a reta capaz de levar os caminhantes para um lugar seguro e longe de tempestades.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.