Gelo da Antártida pode ultrapassar temido limiar em 40 anos

Se os maiores poluentes do mundo não cortarem as emissões de carbono de forma mais agressiva, o ritmo do derretimento do gelo da Antártida pode acelerar drasticamente por volta da metade deste século, provocando um aumento “rápido e incontrolável” do nível do mar durante centenas de anos, fato descoberto por meio de um novo estudo com o uso de modelos.

Cerca de 200 países apresentaram metas de redução de emissões, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas, como parte do Acordo de Paris. O acordo climático global exige um limite de aquecimento de dois graus Celsius, mas as promessas iniciais do Acordo de Paris colocam o mundo nos eixos com, pelo menos, três graus Celsius de aquecimento neste século. No mês passado, o presidente Joe Biden e vários outros líderes mundiais aumentaram as metas de redução de emissões de seus países para se alinharem às metas de temperatura que o Acordo de Paris almeja atingir.

Uma pesquisa publicada na revista científica Nature mostra a diferença que a conquista dessas metas provocaria na maior camada de gelo da Terra. O estudo conclui que, se a humanidade conseguir limitar o aquecimento global a dois graus Celsius, a Antártida continuará a perder seu gelo em um ritmo contínuo durante todo o século 21.

Mas, se o limite de dois graus Celsius for ultrapassado, a Antártida talvez vivencie um salto abrupto no derretimento e perda de gelo por volta de 2060, causando quase o dobro do aumento do nível do mar até 2100. O estudo constata que isso se deve a processos de recuo, que podem ocorrer nas próximas décadas, se as emissões não forem controladas, especialmente no já ameaçado manto de gelo da Antártida Ocidental.

“Esse é outro estudo bastante quantitativo que indica qual é o limite”, afirma Ted Scambos, glaciologista da Universidade do Colorado em Boulder, que não participou do novo estudo. “Se mantivermos o pé no acelerador, vamos atingir um ponto em que o manto de gelo da Antártida Ocidental irá desaparecer.”

Picos críticos – Desde o início da década de 1990, a Antártida já perdeu aproximadamente três trilhões de toneladas de gelo. Na atualidade, a perda está acelerando à medida que a água morna dos oceanos derrete e desestabiliza as plataformas de gelo flutuantes que sustentam as geleiras da Antártida Ocidental, fazendo com que elas fluam mais rapidamente em direção ao mar. Embora esteja evidente que a diminuição do aquecimento global é a melhor maneira de limitar as perdas de gelo futuras e o aumento do nível do mar, os cientistas ainda não sabem a quantidade e a velocidade do desaparecimento do gelo em diferentes níveis de aquecimento.

Em partes, essa incerteza se deve a processos que fazem com que as geleiras da Antártida atinjam um estado de recuo descontrolado, conforme as plataformas de gelo flutuantes que as sustentam se afinam ou desaparecem.

O primeiro processo, chamado de instabilidade do manto de gelo marinho, ocorre quando uma geleira que desemboca no oceano derrete e recua sobre o leito de rocha, que se torna mais profundo terra adentro. A maior parte da Antártida Ocidental tem a seguinte situação: o gelo fica em uma bacia que está abaixo do nível do mar (portanto, “marinho”), como uma bola de sorvete gigante em uma tigela rasa.

Conforme as extremidades do gelo derretem e fluem para o centro, mais profundo e mais alto, a parte da frente da geleira fica mais espessa e exerce mais pressão na plataforma de gelo que o está segurando. Isso faz que com que toda a corrente de gelo transborde mais rápido para o mar. A existência dessa instabilidade é amplamente aceita pelos cientistas climáticos; é o motivo pelo qual eles estão apreensivos com a Antártida Ocidental. O processo talvez já esteja em andamento na Geleira Thwaites, localizada no coração da Antártida Ocidental, e que impede o aumento de vários metros do nível do mar.

O outro processo, instabilidade do penhasco de gelo marinho, é considerado mais especulativo. À medida que o gelo recua até o centro da bacia e perde completamente a plataforma de gelo flutuante que o protege, é possível que penhascos bem altos se ergam sobre o mar. A partir de uma certa altura, em torno de 100 metros, esses penhascos podem desabar, devido ao próprio peso. Se esse processo ocorrer, na Geleira Thwaites ou em qualquer outro lugar, pode resultar em perdas de gelo e aumento do nível do mar muito mais rápidos.

Para entender melhor o futuro da Antártida e como essas instabilidades podem moldá-lo, o novo estudo utilizou modelos de física de plataformas de gelo que incorporam os dois processos. Ele foi desenvolvido a partir de modelos de trabalhos anteriores, publicados em 2016, mas emprega processos físicos mais sofisticados e interações entre o gelo da Antártida e outras partes da Terra.

Que diferença as emissões fazem – Os autores simularam o modelo em vários séculos no futuro, em dois cenários de aquecimento: a meta de dois graus Celsius do Acordo de Paris, e o objetivo ambicioso de 1,5 grau Celsius. Eles também analisaram um cenário em que as temperaturas subiriam três graus Celsius, mais alinhado com as promessas iniciais de redução de emissão estabelecidas pelo Acordo de Paris.

As conclusões mostram que estabelecer metas mais ambiciosas pode fazer uma diferença enorme para o futuro da Antártida. Atualmente, o derretimento de gelo da Antártida contribui com cerca de meio milímetro por ano no aumento global do nível do mar. O estudo constatou que, se a humanidade limitar o aquecimento a 1,5 ou dois graus Celsius, estabilizando as temperaturas até a metade do século, essa contribuição aumentará para cerca de dois milímetros por ano, um total de 80 a 90 milímetros até 2100.

Porém, se extrapolarmos as metas do Acordo de Paris, a perspectiva para nosso futuro é consideravelmente pior. Em um cenário de aquecimento de três graus Celsius, as importantes plataformas de gelo que sustentam a Thwaites e outras geleiras da Antártida Ocidental podem se desestabilizar, provocando instabilidades. Os modelos sugerem que, por volta de 2060, a Antártida pode atingir um ponto de inflexão, em que as perdas de gelo e o aumento do nível do mar disparam devido ao início das instabilidades do manto de gelo e dos penhascos marítimos.

Nesse cenário, a camada de gelo pode ser responsável por cerca de 15 centímetros de aumento global do nível do mar até 2100. Ao atingir esse ponto, o derretimento do gelo da Antártida pode causar um aumento de cinco milímetros por ano no nível do mar — mais do que o dobro comparado aos níveis menores de aquecimento. Em 2300, ainda nesse cenário, somente o gelo derretido da Antártida terá sido responsável pelo aumento de 1,5 metro nos níveis globais do mar, comparados a cerca de um metro, caso o aumento na temperatura se estabilizasse em 1,5 grau Celsius.

Mesmo que haja uma redução nos níveis de carbono na atmosfera, é improvável que o recuo descontrolado do gelo cesse depois que a Antártida ultrapassar o ponto crítico. Os autores descobriram que, mesmo se as promessas iniciais do Acordo de Paris estivessem associadas à tecnologia de remoção de carbono da atmosfera, e fossem colocadas em prática neste século, os níveis do mar continuariam a aumentar durante centenas de anos. A menos que essa tecnologia seja implantada em larga escala nos próximos 40 anos, o aumento total do nível do mar ainda será maior, em comparação ao que seria se o aquecimento global estivesse limitado a dois graus Celsius ou menos. Atualmente, tecnologias que removem o carbono do ar estão em estágios iniciais de desenvolvimento.

“Uma vez que esse limiar é alcançado, não há mais volta”, afirma uma das autoras do estudo, Andrea Dutton, pesquisadora do nível do mar da Universidade de Wisconsin-Madison. “Já está comprometido. Essa é a principal conclusão.”

Modelos concorrentes – Não é possível prever o futuro da Antártida com um único estudo. Essa é uma das principais lições de outro estudo publicado na revista científica Nature, que analisou centenas de modelos de estudos de geleiras e camadas de gelo para prever a contribuição futura de todo o gelo terrestre – incluindo as camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida, geleiras e calotas polares de 19 regiões do mundo – no aumento do nível do mar em cenários distintos de emissões de carbono.

Esse estudo destacou uma diferença gritante entre o que acontecerá com o gelo do planeta se atingirmos as metas do Acordo de Paris, ou se as extrapolarmos: em um mundo com uma temperatura três graus Celsius mais alta, o gelo contribuirá duas vezes mais para o aumento do nível global do mar até o fim do século, se comparado a um aumento de temperatura de 1,5 grau Celsius.

Mas quando se trata da Antártida, ao analisar todos os modelos, o segundo estudo não encontrou uma relação clara entre os níveis de emissões e as perdas de gelo. Os autores explicam que isso se deve a incertezas sobre como os processos concorrentes de mais queda de neve (que adiciona massa à plataforma de gelo) e mais derretimento impactarão a Antártida em meio ao aquecimento da Terra.

Tamsin Edwards, cientista climática da King’s College de Londres e autora principal do segundo estudo, afirma que isso não significa que a Antártida não está sofrendo os impactos da mudança climática. “O que estamos afirmando é que a resposta da Antártida à mudança climática varia muito de acordo com diferentes modelos climáticos e de mantos de gelo”, declarou Edwards em uma coletiva de imprensa.

O novo estudo de Dutton e seus colegas projeta níveis maiores de derretimento do gelo da Antártida, comparado às médias das projeções da análise de Edwards, mas “dentro da variação” de um grupo de modelos mais pessimistas, comenta Edwards. Nenhum dos outros modelos levou em consideração o processo de instabilidade de penhasco de gelo marinho — em vez disso, foram previstos maiores níveis de perda de gelo por outros motivos, incluindo um maior derretimento embaixo ou em cima das plataformas de gelo da Antártida.

Seja qual for o modelo com maior precisão, Dutton afirma que é importante entender que a plataforma de gelo da Antártida tem um ponto crítico intrínseco.

“E existe uma grande possibilidade de estarmos perto de atingi-lo”, ela complementa. “Precisamos fazer o que for possível para evitar que isso aconteça.” (Fonte: National Geographic Brasil – Foto: Nasa Earth Observatory)