As guerras partidárias

A destituição do presidente da Câmara dos EUA, o republicano Kevin McCarthy, nesta 3ª feira, 3, por meio de uma moção que teve 216 votos a favor e 210 contra, abre espaço para grandes interrogações. Como isso pode ocorrer no seio da maior democracia do mundo ocidental? Esta foi a segunda vez na História moderna da Casa em que tal votação foi realizada, algo que não acontecia há mais de um século no país, e a primeira em que seu presidente perde, de fato, o cargo.

s últimos tempos vividos pelos EUA, entre os mais tensos de sua contemporaneidade, expressam simbolismos, não pelo fato de a democracia-símbolo do planeta descer degraus no ranking das potências, ante o crescimento da China, mas por proporcionar um aceso debate sobre a missão dos atores políticos nos sistemas democráticos.

Impressiona o fato de os Partidos Republicano e Democrata, deixando de lado o papel desempenhado pelo País na textura das nações, parecerem inclinados a continuar uma luta esganiçada pelo poder e a depositar na cesta do lixo a célebre lição de John Kennedy: “Não pergunte o que a América pode fazer por você, mas o que você pode fazer pela América”.

Os dois contendores conseguiram, sob a liderança de McCarthy, aprovar uma medida bipartidária provisória de financiamento apoiada pela Casa Branca para evitar a paralisia do governo, o que desencadeou a fúria da ala ultraconservadora do partido, abrindo um buraco negro que ameaça engolir os sustentáculos da democracia americana.

O pano de fundo é a eleição presidencial no próximo ano, com Joe Biden, em vias de completar 82 anos, e Donald Trump, o protagonista conservador, ora liderando as pesquisas de intenção de voto. Os dois partidos engalfinham-se num conflito canibalesco, acirrando suas divergências partidárias e dando as costas ao bom senso.

É triste constatar que os dois grandes partidos já não acendem aquela chama de civismo que tanto maravilhou Alexis de Tocqueville, há 192 anos, quando o jovem advogado de 26 anos foi enviado pela França para estudar o sistema penitenciário estadunidense. Descrevia ele em sua clássica obra sobre a democracia americana: “Os grandes partidos são instrumentos que se ligam mais a princípios que a suas consequências, às generalidades que aos casos particulares, às ideias e não aos homens”.

A queda de braço entre as duas estruturas que se revezam no poder mostra que a balança dos pesos e contrapesos está precisando de reparos. O altruísmo, valor tão enaltecido pela democracia norte-americana, cede lugar ao pragmatismo; o fervor social esfria, basta ver a avaliação negativa que a população confere a seus presidentes, passada a euforia eleitoral.

Os EUA, infelizmente, borram sua imagem de liderança no painel das democracias planetárias. Quais as razões para tal mudança de paradigma? A principal aponta para a alteração da fisionomia política na sociedade pós-industrial. A política deixa de ser missão para se tornar profissão.