Qual sua primeira lembrança?
Uma pergunta simples, mas carregada de ternura e profundidade. É como mergulhar em um lago silencioso e profundo, tentando alcançar a origem silenciosa do que nos faz ser quem somos, mesmo sem termos plena consciência disso. Talvez a infância não comece no nascimento, mas no instante em que a memória desperta. E estou falando de memória antiga mesmo, daquelas em que se tem cinco, quatro ou três anos de idade. Naquela primeira imagem que conseguimos resgatar do passado, ainda meio turva, como uma fotografia antiga que insiste em resistir ao tempo.
Costuma ser algo mínimo. Um cheiro. Um som. Uma sensação que pulsa de volta. A minha memória inaugural tem gosto de madrugada, quase manhã. Lembro do meu pai saindo de casa para trabalhar, enquanto o céu ainda estava escuro, mas já anunciava o dia. O som da porta se fechando, o motor do caminhão ganhando vida lá fora. Logo depois, meus pés descalços me levando até a cama da minha mãe. Eu deitava a cabeça sobre sua barriga redonda – onde minha irmã ainda dormia dentro dela – e ali ficávamos, as três, em silêncio. Uma dentro da outra. Como se o mundo inteiro coubesse naquele instante.
Não sei ao certo quantos anos eu tinha. Nem se essa lembrança é fiel ou se já se misturou com emoções que vieram depois. Mas sei que ela mora em mim como um marco silencioso. Um ponto de partida. O lugar onde a memória começou a me escrever.
E nem só de lembranças doces é feita a infância. Não sei bem o motivo, mas de novo uma das minhas memórias mais antigas é com a gestação de um irmão. Só que dessa vez ela vem carregada de mistério e silêncio. Lembro do dia em que minha mãe queria conversar com minha avó e me mandaram sair do cômodo. Eu, que apesar de ter apenas quatros anos já era curiosa e atenta, fiquei por perto, escutando escondida.
Foi ali que ouvi minha mãe dizer que não sentia mais meu irmãozinho se mexer na sua barriga. Poucos dias depois me contaram que ele havia ido morar com o Papai do Céu. Não entendi direito, mas senti. Senti o vazio que palavras não conseguiam explicar – e talvez não expliquem até hoje, mesmo passadas três décadas.
Mas lembranças tristes à parte – as quais sei que fazem parte de qualquer trajetória – prefiro me apegar as felizes. E que bom que elas são mais numerosas! Me recordo de várias cenas antigas com minha avó Joana, tão presente no meu coração até hoje. Me lembro de estar na sua casa, com a televisão ligada na sala, ela sentada no sofá e com os olhos atentos à novela na tela. Meu tio Dito ao lado, quase adormecido, e eu no chão, rodeada por brinquedos espalhados: uma boneca chamada “Beijoquinha”, alguns ursos de pelúcia e o boneco “Baby” da família dinossauro – meu preferido. Era uma cena comum, mas cheia de afeto. Como se o tempo tivesse parado só para que aquele momento pudesse existir.
As primeiras lembranças são assim: pequenas, quase invisíveis, mas carregadas de significado. Não explicam tudo, mas revelam muito. E talvez o que a gente mais procure ao revisitá-las não seja apenas lembrar, mas reencontrar. Reencontrar o que fomos, o que sentimos e aquilo que, mesmo depois de tanto tempo, ainda vive quieto dentro da gente.
E eu, como vocês já sabem, prefiro viver assim, sei que sou mais feliz desta forma… cultivando lembranças como quem rega um jardim interior, com carinho e delicadeza, mesmo que algumas flores tenham nascido em meio à dor. E a você, caro leitor, desejo que ao visitar suas lembranças mais antigas, reencontre partes de si que talvez nem lembrasse que ainda viviam aí dentro – silenciosas, mas pulsantes, feito raiz que sustenta.
Drielli Paola – @drielli_paola. Servidora Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo. Bacharel em Direito, com pós-graduação e extensões universitárias na área jurídica. Entusiasta de psicologia, história, espiritualidade e causa animal. Apaixonada pela escrita.