A era da pedra lascada

Adiar precatórios é um inexorável desrespeito às regras fiscais

Precatórios são dívidas de um ente público, reconhecidas pela Justiça e transitadas em julgado. Uma vez reconhecidas, a Constituição determina que constem do Orçamento federal para o pagamento no ano subsequente.

A dinâmica dos precatórios preocupa e deveria receber melhor atenção. O valor anual médio saiu de R$ 26 bilhões em 2009-14 para R$ 42 bi em 2010-20. Atingiu R$ 56 bi neste ano e projeta-se R$ 89 bi para 2022.
Como são despesas que fazem parte dos gastos obrigatórios sob o teto de gastos, que já opera com pouca margem, e como as despesas discricionárias, em torno de R$ 120 bi, já estão próximas ao limite inferior que permite o funcionamento da máquina pública, há pouco espaço de manobra. Mas seu aumento não é um “meteoro”, dada a dinâmica recente e a maneira com que esses processos são acompanhados.

A questão de fundo, entretanto, é que não há como acomodar tal crescimento conjuntamente às demais demandas do Executivo e do Legislativo, meritórias ou não, como a expansão do Bolsa Família, o reajuste dos servidores, as vultosas emendas parlamentares, sem que se desrespeite nosso arcabouço fiscal.

É questionável se uma despesa da natureza dos precatórios, que não é passível de gestão e tem uma dimensão de imprevisibilidade, deveria estar dentro do teto de gastos. Mas assim consta da Constituição, e a gestão orçamentária deveria respeitar as regras. Se algo deve ser feito com relação a essa despesa em 2022, o que é discutível, excetuá-la do teto e recalculá-lo retroativamente poderia ser uma alternativa menos pior em termos de transparência e defensabilidade. Seria certamente superior à marotagem do parcelamento aliado à criação de um fundo extra orçamentário – uma operação de caráter duvidoso e odor ainda mais eleitoreiro.

A opção pelo parcelamento nada mais é do que a decisão unilateral de utilizar recursos de terceiros para pagar elevação de despesas sem que Executivo e Legislativo tenham que decidir prioridades, elevando ainda mais a insegurança jurídica.

No fundo, voltamos ao problema original que nos acompanha há décadas: o caráter “geológico” do Orçamento. A condição suficiente para um programa estar no Orçamento deste ano é que tenha estado no do ano anterior, e assim sucessivamente, cristalizando-se em camadas. Por indução regressiva, programas – sem nenhuma avaliação de eficácia— permanecem no Orçamento desde o instante em que um criador heroico fincou a sua bandeira na idade da pedra lascada.

O resultado desse processo orçamentário, cada vez menos transparente, é o inexorável desrespeito às regras fiscais.

 

Antônio Delfim Netto: Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”