Do morgue ao corredor

Aos profissionais da saúde em Mairiporã. Em especial aos que atuam no Hospital de Campanha “Anjo Gabriel” 

Parei diante da porta gélida e cerrada. Alguns segundos e identifiquei o que acontecia além daquela passagem estreita para o tamanho dos significados que se encerram quando os corpos passam cobertos esperando o último transporte de suas carnes frias e contaminadas sem que possam as faces serem reveladas para um último adeus. Já não cabe nem mesmo a dignidade de vislumbrar a urna para findar o ciclo e organizar o luto, fazendo com que a ausência possa doer o necessário para seguir nesses nossos doentes dias de fragilidade humana. Os que adentram a porta, já cumpriram seus passos que sempre souberam limitados, mas que imagino pouco antes, se faziam esperançosos de que não lhes faltasse o ar dos pulmões e que a vida perpassasse a enfermidade. O amor da vida de alguém ficou ali e agora tudo é silêncio e espera.

Examino o batente sem banalizar o mistério, mas logo me vejo com o peito apertado, recordando que tudo em menos de um segundo suspira e se esvai, interrompendo essas certezas que insistimos vaidosamente em alimentar.

Adiante, alcanço o corredor, esse sim largo e cheio de portas. Passagem dos vitoriosos e que essa luta vencida dia após dia, continue sendo o destino da maioria que por ali orgulhosos, saem sob rodas que giram o mundo das famílias e em cada centímetro agigantam a fé, afastando a saudade e findando uma longa espera de isolamento.

Medicina e amor estampados nos rostos e nos sorrisos ocultados pelas máscaras, mas que se revelam pelos olhares. Uma lágrima sorrateira chega quente, rolando pesada pela face destes anjos anunciadores da maravilha de ter sobrevivido e ver nascer no mundo a esperança retratada no presente de enfim voltar para casa.

“E, no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré”. A uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria.” (Lucas 1:26,27)

Ladeados pelos anjos de branco, passam aplaudidos ao encontro dos seus e o amor da vida de alguém então pode cumprir um caminho diferente e retomar o sabor de estar junto e vivo. Poder dizer do amor, que por tanto egoísmo, pensamos não ser preciso e compreender que na metáfora da perda representada pela solidão do morgue, há sempre um corredor que surge como alento para nos consolar da pequenez. Como no anúncio do anjo, os mensageiros de branco nos convidam a ir em frente, inspirados pela missão de ser e servir.

 

Luís Alberto de Moraes tem formação em Letras, leciona há quase vinte anos e prepara o lançamento de um livro de crônicas e poemas. @luis.alb